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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

TOLSTOI - CONDE LYEFF, NIKOLAIEVICH TOLSTOI

BIOGRAFIA
Nikolaievich Tolstoi, romancista, reformador social e religioso místico, nasceu no governo de Tula a 28 de Agosto de 1828. 
Educado na Universidade de Kazan, serviu no exército do Cáucaso e na guerra da Criméia, como comandante duma bateria em 1855. Tomou parte na batalha de Tchernaya e no assalto de Sebastopol, depois do qual foi enviado como mensageiro especial para S. Petersburgo. Retirou-se quando terminada a companhia. Depois do livramento dos escravos, viveu nos seus estados, trabalhando e avaliando os camponeses, e dedicando-se aos estudos. As histórias referentes à sua vida e morte (em 1911), tem assumido as proporções de um mito. Os seus principais romanbces são: Guerra e paz, 1868 e Ana Karenina.  Entre as suas outras obras estão: Sebastopol, 1855; Ivan Ilytch, 1886; A minha Religião, 1885; Sonata à Kreutzer, 1890 e guerra, 1882. 
Nicéas Romeo Zanchett 

sábado, 15 de julho de 2017

SEM SAÍDA - Por Tolstoi




De Ana Karenina
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              Nada complica mais as circunstâncias da vida como o desacordo entre esposos; tem-se visto famílias sofrer-lhe os deploráveis efeitos a ponto de permanecerem anos inteiros em um lugar desagradável e incômodo por causa da dificuldade que haveria em se chegar a tomar a mais pequena decisão. 
              A tanto tinham chegado Wronsky e Ana; As árvores das avenidas tinham tido tempo de se revestirem de folhas e as folhas de se encherem de pó, e eles ainda ali estavam em Moscou, onde a permanência lhes era odiosa a ambos. E entretanto entre eles não havia nenhuma causa grave de desinteligência além dessa irritação latente que incitava Ana a contínuas tentativas de explicação, e Wronsky a opôr-lhe uma reserva glacial. De dia para dia o azedume aumentava; Ana considerava o amor como o fim único da vida do seu amante e não compreendia este senão sob este aspecto; mas a necessidade de amar inerente à natureza do conde devia concentrar-se exclusivamente sobre ela senão suspeitava-o de infidelidade e no seu cego ciúme acusava todas as mulheres. Ora temia as relações  grosseiras a que Wronsky seria acessível na sua qualidade de celibatário, ora desconfiava das senhoras da sociedade e especialmente da menina que ele poderia desposar no caso de romper com ela. Este receio fora despertado no seu espírito por uma confidência imprudente do conde que num momento de abandono censurara a falta de tato da mãe propondo-lhe como noiva a jovem princesa Sarokine. O ciúme levara Ana a acumular os motivos de queixa mais diversos contra aquele que no íntimo ela adorava; era a ele que importava a sua demorada permanência em Moselle, a incerteza que vivia e sobretudo a sua dolorosa separação. 
              Pelo seu lado Wronsky, descontente com a falsa posição em que ela entendera persistir, queria-lhe mal por agravar ainda de todos os modos as dificuldades que dali resultavam.  Se algum raro momento de ternura sobrevinha, Ana não se sentia aplacada e só nela via da parte do conde a humilhante afirmação de um direito. 
               O dia baixava, Wronsky tomava parte num jantar de celibatários, e Ana tinha-se refugiado para esperá-lo no gabinete de estudo onde o ruído da rua a incomodava menos que nas outras casas.  
                Caminhava de um lado para outro, repensando a causa do último dissentimento deles admirando-se ela própria que uma coisa tão fútil tivesse degenerado em cena dolorosa.  A propósito da protegida de Ana, Wronsky tinha ridicularizado os ginásios  de mulheres, pretendendo que as ciências naturais seriam de medíocre utilidade àquela criança.  
                Ana aplicara imediatamente esta crítica às suas próprias ocupações, e para a seu turno espicaçar Wronsky, respondera:  
                - Não contava, é certo, com a sua simpatia, mas julgava-me com direito à sua delicadeza. 
                O conde corara e para acabar de ferir Ana, permitira-se dizer: 
                - Confesso que não compreendo a sua mania por essa menina, desagrada-me, porque não vejo nisso senão um afeto.  
                 A observação era áspera e injusta e atacava os laboriosos esforços da Ana por arranjar uma ocupação que a ajudasse a suportar a sua triste posição.
                - É uma infelicidade que só os sentimentos grosseiros e materiais vos sejam acessíveis, respondera ela saindo do quarto. 
                Não se repetiu a discussão, mas ambos compreenderam que não esqueciam; um dia inteiro passado a sós consigo mesma, fizera entretanto refletir Ana, e desgostosa com a frieza do amante, tomara a resolução de se acusar a si própria para suscitar a todos o custo uma reconciliação. 
               - É o meu absurdo ciúme que me torna irritável, desde que obtenha o meu perdão, partiremos para o campo e lá me acalmarei, pensou ela. Bem seu que acusando-me de afetar ternura para uma estranha, exproba-me o não gostar de minha filha. Mas aí que ideia faz ele do amor que uma mãe tem a um filho? Pode lá saber o que eu lhe sacrifiquei renunciando a Sérgio? Se procura ferir-me é porque já não me ama, porque ama outra...
              Mas detendo-se nesse declive fatal fez esforço para sair do círculo de ideias que a desvairavam e deu ordem para lhe trazerem as malas para começar os seus preparativos de partida. Wronsky voltou às dez horas. 
                 - O jantar correu bem? perguntou Ana, indo ao encontro do conde, conciliadora. 
                 - Como de costume, respondeu este, notando logo a disposição do espírito favorável em que ela estava. Que é isto? acrescentou, vendo as malas. Bela ideia sim Senhora! 
                 - Sim. É melhor irmo-nos embora. O passeio que fiz hoje  deu-me vontade de voltar para o campo. Ademais, não há nada aqui que nos retenha. 
                 - Tomara eu também ir-me embora. Manda por o chá na mesa enquanto mudo de roupa, já venho. 
                 A aprovação relativa à partida tinha sido dada com um tom de superioridade humilhante, dir-se-ia que o conde falava a uma criança malcriada; a necessidade de lutar despertou logo o coração de Ana; porque haveria ela de fazer-se humilde diante dessa arrogância? Conteve-se, entretanto, e quando voltou, contou-lhe calmamente os incidentes do dia e os seus planos de viagem. 
               - Parece-me uma inspiração, disse ela; pelo menos corto esta eterna expectativa; quero tornar-me indiferente à questão do divórcio. Não es da minha opinião? 
               - Certamente, respondeu ele, notando com sobressalto a emoção de Ana. 
               - Conta-me agora o que se passou no jantar, disse ela depois de um momento de silêncio. 
               - Estava ótimo o jantar, respondeu o conde, e disse-lhe os nomes de quem estava nele; depois do jantar tivemos regatas, mas como em Moscou sempre se arranja maneira de fazer alguma coisa ridícula, exibiram-nos a professora de natação da rainha da Suécia. 
               - Como? Ela nadou diante de vocês? perguntou Ana, sombreando-se.
               - Nada, e por sinal vestida horripilantemente com um traje vermelho. Quando partimos?
               - Pode-se lá imaginar nada mais tolo! Há alguma coisa extraordinária na sua maneira de nadar? 
               - Nada absolutamente, é simplesmente absurdo. Então já fixaste a partida? 
               Ana sacudiu a cabeça como para afugentar uma obsessão. 
               - Quanto mais cedo melhor, receio não estar pronta amanhã, mas depois de amanhã.
               - Depois de amanhã é domingo. Tenho que ir à casa de minha mãe. 
               Wronsky traiu involuntariamente certo mal estar ao ver os olhos de Ana fixarem-se nele com desconfiança, e esta perturbação aumentou a suspeita dela.  Esqueceu a professora de natação da rainha da Suécia para só pensar na princesa Sarokina que morava nas imediações de Moscou com a velha condessa. 
               - Podes ir amanhã? 
               - Impossível por causa de uma preocupação que minha mãe tem que assinar e do dinheiro que ela tem a entregar-me. 
               - Então não partiremos nunca. 
               - Porque? 
               - Amanhã ou nunca. 
               - Mas isso não tem senso comum! exclamou Wronsky admirado. 
               - Para ti que não pensas senão em ti e não queres compreender o que eu sofro aqui.Achaste meio de me acusar de hipocrisia por causa da Jane, a única criatura que me interessava. Na tua opinião eu dou-me ares, afeto sentimentos que nada tem de natural. Tomara saber o que tem de natural a vida que levo aqui! 
               Teve medo da sua violência, e não se sentia todavia, com força de resistir à tentação de lhe mostrar as culpas que ele tinha. 
               - Não me compreendeste, replicou Wronsky ; o que eu quis dizer foi que essa ternura súbita não me agradava. 
               - Não é verdade e para quem se gaba de lealdade..
               - Não é meu costume gabar-me nem mentir, disse ele reprimido à cólera que lhe fazia ferver o sangue, e lamento que não respeites... 
               O respeito foi inventado para simular a falta de amor; ora, se tu já não me amas seria mais leal confessar-me. 
               - Mas isto é insuportável, disse o conde quase a gritar, aproximando-se bruscamente de Ana; a minha paciência tem limites, para que pô-la assim à prova? acrescentou contendo as palavras amargas prestes a escaparem-lhe da boca. 
               - O que quer dizer com isso? perguntou ela aterrorizada pelo olhar rancoroso que ele lhe lançara. 
               - Eu é que lhe pergunto o que quer de mim! 
               - Que posso eu querer senão ser abandonada como tens tenção de o fazer? De resto a questão é secundária. Eu quero ser amada, e se já não me ama, está tudo acabado. 
               E dirigiu-se para a porta. 
               - Espera, disse Wronsky retendo-a pelo braço; de que se trata entre nós? Eu peço para só partir daqui a três dias e tu respondes a isto que eu minto e que sou um homem desonesto. 
               - E repito, um homem que se exproba os sacrifícios que fez por mim (era uma alusão a antigas queixas) é mais que um homem desonesto, é um homem sem coração. 
               - Decididamente a minha paciência está esgotada, disse Wronsky e deixou-a sair. 
              Ana entrou no seu quarto cambaleando e deixou-se cair em uma poltrona. 
              -  Odeia-me, é certo; ama outra é m mais certo ainda, está tudo acabado, é preciso fugir; mas como? 
              Os pensamentos mais contraditórios assaltaram-na. Para onde iria? Para a casa da tia que a tinha criado? Para a casa de Dolly, ou simplesmente para o estrangeiro? Esta separação seria definitiva? Que fazia ele no seu gabinete? Que diriam Alexis Alexandrovitch e a gente de Petersburgo? Agitava-a uma ideia vaga que não consegui formular; lembrou-se de uma coisa que dissera ao marido, após a sua doença; "porque não morri eu?" e imediatamente estas palavras despertaram o sentimento que tinha exprimido outrora. 
               - Morrer, sim, era a única maneira de sair da  situação em que se achava; a sua vergonha, a desonra de Alexis Alexandrovitch e de Sérgio, tudo desaparece com a minha morte; ele lamentar-me-há então, a amar-me-á, terá saudades  do nosso amor. 
               Esboçou-se maquinalmente nos lábios um sorriso de enternecimento sobre si mesma enquanto que tirava maquinalmente os anéis dos dedos. 
                - Ana, disse uma vez perto dela que ela ouviu sem levantar a cabeça, estou disposto a tudo quanto quiseres, partamos depois de amanhã. 
               Wronsky entregara devagarzinho e falava-lhe afetuosamente. 
               - Faz como quiseres, respondeu ela se, se poder dominar mais tempo e desfez-se em lágrimas. Deixa-me, vai-te embora, murmurou ela através dos soluços, eu irei para longe, eu farei mais! que sou eu, uma mulher perdida, uma pedra ao teu pescoço. Não quero atormentar-te mais. Tu amas outra mulher, eu te desembaraçarei de mim. 
               Wronsky suplicou-lhe que se acalmasse, jurou-lhe que não havia a menor causa para o seu ciúme, protestou-lhe o seu amor. 
               - Porque torturar-nos assim? perguntou ele. 
              Ana julgou ver lágrimas nos olhos e na sua voz, e passando de repente do ciúme à mais ardente ternura, cobriu de beijos a cabeça, o pescoço e as mãos do seu amante. 
              A reconciliação foi completa. Logo no dia seguinte, Ana, sem fixar definitivamente o dia da partida, ativou os preparativos. Achava-se ela entretida a tirar vários objetos de uma mala aberta amontoando-os nos braços de Annouchka, quando Wronsky entrou já pronto para sair, apesar de ser ainda muito cedo. 
              - Vou imediatamente à casa da mãe, talvez que ela possa enviar-me dinheiro e nesse caso partimos amanhã. 
              A alusão a esta visita desmanchou as boas disposições de Ana. 
              - Não, não vale apena, eu mesma não posso estar pronta. 
              E imediatamente perguntou a si mesma porque seria que a partida, impossível na véspera, já era admissível agora.
             -  Faze como tencionavas, acrescentou, e agora vai almoçar que eu já vou também. 
             Quando entrou na casa de jantar Wronsky comia um bife. 
             - Esta casa mobiliada tornou-se para mim um objeto de ódio e o campo parece-me uma terra prometida, disse ela com animação; mas vendo o criado entrar para pedir o recibo de um telegrama, a fisionomia contraiu-se-lhe. Não era admiração nenhuma entretanto que Wronsky recebesse um telegrama. 
             - De quem é o telegrama? 
             - De Stiva, respondeu sem açodamento o conde. 
             - Porque não me mostraste? que segredo há entre meu irmão e eu? 
             - Stiva tem a mania de telegrama, que necessidade  havia de me enviar um telegrama para me dizer que nada havia ainda de decidido? 
             - Para o divórcio? 
             - Sim, pretende que não pode obter resposta alguma definitiva, ai o tens lê tu mesma. 
             Ana pegou no telegrama e a mão temia-lhe; afinal dizia assim: "Pouca esperança, mas farei o possível e o impossível." 
             - Não te disse ontem que isso me era indiferente? 
             Era perfeitamente inútil esconder-me o que quer que fosse. E consigo mesma pensava, "é assim que ele procede, talvez para se corresponder com mulheres." 
             - Quisera que esta questão te interessasse tão pouco quanto interessa a mim.
             - Interessa-me porque gosto das situações  nitidamente definidas. 
             - Porque? Para que queres tu o divórcio se o amor existe? 
             - Sempre o amor! pensou Wronsky com um trejeito. Bem sabes que se desejo é por tua causa e dos pequenos. 
             - Não haverá mais pequenos. 
             - Se assim for eu o lamento. 
             - Pensa só nos filhos e não pensas em mim, respondeu ela esquecendo que ele acabava de dizer, "por tua causa e dos pequenos" e descontente com aquele seu desejo de ter filhos como de uma prova de indiferença pela sua beleza. 
             - Pelo contrário, penso em ti, pois estou persuadido que a tua irritabilidade é principalmente devida à posição falsa em que te encontras, respondeu ele em tom frio e contrariado. 
               - Não compreendo que a minha situação possa sr a causa da minha irritabilidade, disse ela vendo um juiz terrível condená-la pelos olhos de Wronsky; a situação parece-me perfeitamente clara, não estou eu inteiramente em teu poder? 
               - É verdade, mas tu desconfias da minha liberdade. 
               - Oh, quanto a isso podes ficar tranquilo, disse ela enquanto tomava café, e notando quanto seus gestos e até a sua maneira de engolir irritavam os nervos de Wronsky.  Não me preocupo com os projetos de casamento da sua mãe. 
                - Não falamos dela. 
                - Porque não? Podes crer-me, uma mulher sem coração quer seja velha quer seja nova, não me interessa. 
                - Ana peço-te que respeites minha mãe. 
                - Uma mulher que não compreende em que consiste a honra de seu filho, não tem coração. 
                - De novo te peço que não fales desrespeitosamente de minha mãe, repetiu o conde elevando a voz e olhando a Ana com severidade. 
                Ela sustentou esse olhar sem lhe responder e lembrando-se das suas carícias da véspera; "que carícias banais!" pensou. 
                 - Tu não gosta da tua mãe, isso são frases e mais frases. 
                 - Se é assim, é preciso... 
                 - É preciso tomar uma decisão, disse ela, e quanto a mim sei o que me resta fazer "disse dispondo-se a sair, quando a porta se abriu dando passagem a Yavshine. 
                 Deteve-se logo e deu-lhe bom dia. Porque dissimulava ela assim diante de um estranho que mais cedo ou mais tarde tudo viria a saber? Ela mesma não o saberia explicar. Sentando-se perguntou tranquilamente:
                 - Deram-lhe seu dinheiro? 
                 Sabia que Yavshine acabara de ganhar no jogo uma grande soma. 
                 - Hei de recebe-lo provavelmente hoje, respondeu o gigante, notando  que tinha entrado em má ocasião.  Quando partem? 
                - Depois de amanhã, provavelmente, disse Wronsky, 
                - Não tem nunca piedade dos seus infelizes adversários? perguntou Ana, dirigindo-se sempre ao jogador. 
                - Nunca fiz a mim mesmo essa pergunta, Ana Arcandievna. A minha fortuna inteira está aqui, disse mostrando a algibeira; mas rico neste momento, posso encontrar-me ao sair do club esta noite. Quem joga comigo ganhar-me-ia até a camisa do corpo. É nesta luta que constitui o prazer.
               - Mas se fosse casado o que diria sua mulher? 
               - Também por isso não penso em casar, respondeu Yavshine rindo. 
               - E nunca esteve apaixonado? 
               - OH Deus, quantas! mas nunca de modo que chegasse tarde ao club para jogar. 
               - Um amador de cavalos que vinha fazer negócio entrou nessa ocasião, e Ana saiu da casa de jantar. 
               - Antes de sair, Wronsky passou pelo quarto dela e procurou qualquer coisa em cima da mesa. Ela fingiu que não o via, mas envergonhada desta dissimulação, perguntou-lhe em francês: 
               - De que precisa? 
               - Do certificado de origem do cavalo que acabo de vender, respondeu Wronsky com um tom que significava mais claramente que as palavras: Não tenho tempo para entrar agora em explicações que não dariam resultado algum. "Não tenho culpa alguma, pensou ele, tanto pior para ela se quer castigar-se a si mesma." Pareceu-lhe entretanto ao sair do quarto que Ana o chamava. 
               - O que é, Ana? perguntou. 
               - Nada, respondeu esta friamente. 
               - Tanto pior, pensou ele de novo. 
               Passando diante de um espelho viu uma cara tão desconsolada que lhe acudiu a ideia de deter-se para consolar Ana, mas já era tarde, já estava longe. Passou o dia fora de casa e quando entrou, a criada de quarto informou-o de que Ana Arcadievna estava com enxaqueca e pedia que não a incomodassem. 
               Nunca até ali se passara um só dia sem trazer uma reconciliação e desta vez a zanga deles parecia um rompimento. Porque se teria Wronsky afastado, como fizera, apesar do desespero a que vira reduzida? Era a prova que a odiava e que amava outra. As palavras cruéis proferidas pelo conde voltaram-lhe à memória, e na sua imaginação agarravam-se com palavras grosseiras que ele era incapaz de proferir. 
              "Não a retenho, fazia-o ele a dizer-lhe, pode ir embora; já que não se importava com o divorcio é que já contava voltar para casa de seu marido. Se quer dinheiro  diga quanto precisa."
               " Mas ainda ontem me jurava que não amava senão a mim... Ele é um homem honrado e sincero, pensava momentos depois. "Não me tenho eu desesperado inutilmente tantas vezes já? "
                Passou o dia inteiro, salvo durante uma visita de duas horas à família da sua protegida, em alternativas de dúvida e de esperança. Cansada de esperar toda a tarde, acabou por entrar no seu quarto, recomendando a Annouchka que dissesse que ela estava incomodada. "Se ele vier, apesar de tudo, é sinal que ainda me ama, senão está tudo acabado e sei o que me resta fazer."
                Ouviu o rodar da caleche quando o conde entrou, ouviu-o tocar a campainha e o seu coloquio com Annouchka.  Depois os seus passos afastaram-se, ele entrou no  gabinete de trabalho e Ana compreendeu que isso decidia da sua sorte. A morte apareceu-lhe então como o único meio de punir Wronsky,triunfar dele e reconquistar o seu amor. A partida, o divórcio, tornavam-se indiferentes. O essencial era o castigo. 
                Tomou o frasco de ópio, despejou a dose costumada em um copo. Tomando tudo seria tão fácil pôr um termo à existência! Deitada, com os olhos abertos seguia com eles no teto a sombra da vela que acabava de se consumir em um castiçal e cuja luz trêmula se confundia por momentos com a sombra do biombo que dividia o quarto. 
                Que pensaria depois dela desaparecer, que remorsos não teria! "Como pude falar-lhe duramente, diria ele, deixá-la sem uma palavra afetuosa; e já não existe, deixou-nos para sempre!" De repente a sombra do biombo pareceu estender-se pelo teto inteiro, as outras sombras reuniram-se, vacilaram e confundiram-se em uma obscuridade completa. A morte! pensou ela com pavor, e um terror tão profundo se apoderou de todo o seu ser que procurou trêmula  acender a luz. Foram-lhe precisos alguns momentos para reunir as ideias e saber onde estava; lágrimas de alegria inundaram-lhe as faces quando compreendeu que vivia ainda. "Não, não, tudo antes do que a morte! Eu amo-o, ele ama-me, estes dias maus passarão!" E para escapar aos seus terrores pegou na vela e correu ao gabinete de Wronsky. 
                Ele dormia um sono pacífico que ela contemplou longamente chorando de ternura; mas teve todo o cuidado de não acordá-lo; te-lo-ia olhado com seu olhar glacial e ela não resistia à necessidade de se justificar e acusá-lo. Voltou pois ao seu quarto, tomou uma dose dupla de ópio e dormiu pesadamente sem perder o sentimento dos seus sofrimentos. Pela manhã teve um pesadelo horrível; como outrora, viu um pequeno mujik desgrenhado pronunciar palavras ininteligíveis, agitando alguma coisa tanto mais aterrorizante quanto parecia não reparar que ela estava ali. Inundou-a um suor frio. 
                Ao despertar, os acontecimentos da véspera vieram-lhe confusamente ao espírito.
                "Que se passa de tão desesperado?" pensou ela; "uma zanga? não foi a primeira. Pretextei uma enxaqueca e ele não quis me incomodar; tudo se reduz a isto. Amanhã vamos embora para o campo; é preciso vê-lo, falar-lhe e precipitar a partida." 
                Assim que se levantou, dirigiu-se para o gabinete de Wronsky; mas, ao atravessar o salão, o barulho dum carro que parava à porta chamou a sua atenção e fê-la olhar pela janela. Era um cupê; uma menina de chapéu claro, metendo a cabeça pela portinhola, dava ordens a um trintanário; este tocou a campainha, falaram no vestíbulo, depois alguém subiu, e Ana ouviu Wronsky descer a escada a correr, viu-o sair sem chapéu, aproximar-se da carruagem, tomar um embrulho das mãos da menina e sorrir ao falar-lhe. O cupê afastou-se, e Wronsky subiu as escadas, sempre apressado. 
                Esta pequena cena dissipou de repente a espécie de torpor que pesava sobre a alma de Ana, e as impressões da véspera despedaçaram-lhe o coração mais dolorosamente que nunca. Como podia ela abaixar-se ao ponto de ficar mais um dia só sob aquele teto?  
                Entrou no gabinete do conte para lhe declarar a resolução que tinha tomado. 
                - A princesa Sarokine e a filha trouxeram-me o dinheiro e os papéis de minha mãe que eu não pudera obter ontem, disse ele tranquilamente, sem parecer notar a expressão trágica da fisionomia dela. Como te sentes esta manhã? 
                Em pé, no meio da casa, ela olhou-o fixamente, ao passo que ele continuava a ler a sua carta, o cenho carregado, depois de ter lançado os olhos para ela. 
                Ana, sem falar, voltou-se lentamente e saiu; ele poderia ainda retê-la, mas deixou-a passar a soleira da porta. 
                - A propósito, disse ele quando ia desaparecer, é decididamente amanhã que nós partimos? 
                - O Senhor, mas eu não, respondeu ela. 
                - Ana, a vida nestas condições é impossível. 
                - O Senhor, eu não, repetiu ela ainda. 
                - Isto não se tolera. 
                - Has de... has de arrepender-te, disse ela. 
                 E saiu. 
                 Alarmado pelo tom desesperado com que lhe ouvira pronunciar as últimas palavras, o primeiro movimento de Wronsky foi segui-la; mas refletiu, tornou a sentar-se e, irritado por aquela ameaça inconveniente, murmurou cerrando os dentes: 
                - Experimentarei tudo, só me resta a indiferença. 
                E vestiu-se para ir à casa da mãe fazê-la assinar uma procuração. 
                Ana ouviu-o sair do gabinete e da casa de jantar, parar no vestíbulo para algumas ordens relativamente ao cavalo que acabara de vender; ouviu avançar a caleche e abrir a porta da rua; alguém tornou a subir as escadas a correr; precipitou-se para a janela e viu Wronsky tomar das mãos do criado um par de luvas esquecido, depois tocar nas costas do cocheiro e dizer-lhe algumas palavras, e sem levantar os olhos para a janela, recostar-se, como de costume, no fundo da caleche, cruzando as pernas. Na esquina da rua desapareceu aos seus olhos. 
               - Lá se foi, está tudo acabado, pensou ela consigo mesma em pé, na janela. 
               E a impressão de horror que lhe causara à noite o seu pesadelo, e a vela que se apagava, invadiu-a completamente. Teve medo de ficar sozinha. Tocou a campainha e foi ao encontro do criado. Informou-se do lugar para onde o conde mandara seguir. 
                - Para as cocheiras, respondeu o criado, e deixou ordem de prevenir a Senhora que a caleche ia entrar e estaria à sua disposição.  
                - Está bem, vou escrever um bilhete que irá levar imediatamente às cocheiras. 
                Sentou-se e escreveu: 
                "Sou culpada, mas pelo amor de Deus volta; nós nos explicaremos; tenho medo!"
                Lacrou o bilhete e entregou-o ao criado, e no seu receio de ficar só, foi ter com a filhinha. 
                - Já não o reconheço. Onde estão os seus olhos azuis e o seu lindo sorriso tímido? pensou ela vendo a linda criança de olhos negros em lugar de Sérgio, que na confusão das suas ideias ela pensava encontrar. 
                A pequenita, sentada perto de uma mesa, batia-lhe a torto e a direito com uma rolha; olhou a mãe, que se sentou junto dela e lhe tomou a rolha das mãos para a fazer girar. O movimento das sobrancelhas, o riso sonoro da criança recordavam tão vivamente Wronsky que Ana não o pode suportar; levantou-se e saiu. 
                 "Será possível que tudo esteja acabado! Ele voltará, mas como me explicará o seu sorriso e a sua animação ao falar com ela? Resignar-me-ei a tudo, pois não vejo senão um remédio e esse não quero eu!"
                 Tinham-se passado doze minutos. 
                  "A estas horas ele já recebeu a minha carta e estará aqui dentro de dez minutos. E se ele não voltar? É impossível. Não quero que ele me encontre com os olhos vermelhos; vou passar água pela cara. E o meu penteado?"
                 Levou as mãos à cabeça; tinha-se penteado inconscientemente.
                 "Quem é esta criatura, perguntou ela a si mesma, vendo num espelho a sua fisionomia desfeita, com os olhos estranhamente brilhantes. Sou eu!"
                 E pareceu-lhe sentir ainda nos ombros os beijos recentes do seu amante; estremeceu e levou a mão aos lábios:  
                 "Irei endoidecer? " pensou aterrorizada, e correu ao quarto de cama, que Annouchka estava a arrumar."
                 "Annouchka", murmurou, sem saber o que dizer.
                 - Não vai hoje à casa de Daria Alexandróvena? disse a criada para lhe sugerir um alvitre. 
                 - Quinze minutos para ir, quinze para voltar, não tarda ai. 
                 Olhou para o relógio. 
                 "Mas como pode ele deixar-me assim?"
                 Aproximou-se da janela. 
                 Talvez se tivesse enganada no cálculo e recomeçou a conta dos minutos desde que o conde saíra.
                 Quando ia a olhar para o relógio do salão, uma carruagem parou diante da porta; era a caleche, mas ninguém subia as escadas e ouviu vozes no vestíbulo. 
                O Sr. conde já tinha partido para a gare de Nijni, vieram dizer-lhe entregando-lhe o bilhete. 
                 - Levem imediatamente esta carta ao conde, a casa de sua mãe e tragam-me já a resposta. 
                "Que será de mim, enquanto espero? Vou à casa de Doly para não endoidecer. Ah! posso ainda telegrafar!" 
                 E escreveu o telegrama seguinte: 
                 "Preciso absolutamente falar-lhe, venha depressa."
                Foi vestir-se e com o chapéu na cabeça parou diante de Annouchka, cujos olhos cinzentos lhe testemunharam uma grande simpatia. 
                 - Annouchka, que fazer? murmurou ela, deixando-se cair em uma poltrona, soluçando. 
                Não se agite assim, Ana Arcadievna; dê uma volta para se distrair, são coisas que acontecem. 
                - É isso, vou sair. Se durante a minha ausência trouxerem um telegrama envia-o a casa de Daria Alexandróvna. E procurando dominar-se; Ou antes não, eu volto. 
                "O melhor é não pensar, ocupar a atenção, sair , deixar esta casa principalmente, pensou ela sentindo, aterrorizada, o coração bate-lhe."
                E subia rapidamente para a caleche. 
                - A casa da princesa Oblonsky! ordenou ao cocheiro. 
               A atmosfera estava límpida; a chuva fria, que caíra durante a manhã, fazia ainda luzir ao sol de maio os telhados das casarias, as pedras dos passeios e o couro das equipagens. Eram três horas da tarde, o momento mais animado do dia. 
               Ana, docemente embalada pela caleche, que puxavam rapidamente dois cavalos cinzentos de trote, formou juízo diverso da sua situação, rememorando ao ar livre os acontecimentos dos últimos dias. A ideia da morte não a aterrorizava já tanto, e ao mesmo tempo pareceu-lhe mais inevitável. O que ela se exprobou foi a humilhação a que se tinha sujeitado. "Para que acusar-me como fiz? Então eu não posso viver sem ele? E deixando esta pergunta sem resposta pô-se a ler maquinalmente as tabuletas. - Escritório e Depósito. - Dentista. - " Sim confesso-me a Doly; ela não gosta de Wronsky; há de ser difícil confessar tudo, mas irei até o fim; ela é minha amiga, seguirei o que me aconselhar. Não me deixarei tratar como uma criança". - Filipof - dos kalatchis; dizem que manda a massa até Petersburgo; a água de Moscou é melhor; os poços de Miatichtchy... E recordava-se de ter passado por aquela localidade indo ao convento de Troitza em peregrinação com sua tia. "Ia-se de carro nessa época, e seria eu mesma com mão vermelhas?  Quantas coisas que me pareciam então sonhos de felicidade irrealizáveis, me parecem miseráveis hoje e não há séculos que me pudessem restituir a minha inocência de então! Quem me diria então o rebaixamento em que caíra! O meu bilhete deve tê-lo feito triunfar. Meu Deus, como esta pintura cheira mal! Porque se teima sempre em construir e pintar casas? Modas e vestidos." 
                Uma pessoa que passava na rua cumprimentou-a; era o marido de Annouchka. "Os nossos parasitas, como diz Wronsky; porque os nossos? ... Ah se eu pudesse arrancar o passado com as suas raízes! mas isso é impossível; quando muito pode-se fingir que se esquece! E entretanto, recordando o seu passado em companhia de Aléxis Alexandrovitch, constatou que facilmente tinha dele perdido a lembrança. "Dolly não me dará razão, porque é o segundo que queixo. E tenho a pretensão de ter razão? " Sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos. 
                "De que podem falar aquelas raparigas rindo?? de amor? mal sabem com isso é triste e miserável... O bulevar e as crianças; três rapazes brincam com cavalinhos... Sérgio, meu filhinho Sérgio! Perderei tudo sem te tornar a encontrar! Oh se ele não voltar, tudo está bem perdido! Talvez que perdesse o comboio e que o vá encontrar em casa... Ainda quer humilhar-te mais? pensou com uma exprobação para a sua fraqueza. "Não, vou entrar em casa de Dolly, dir-lhe-ei: Sou muito infeliz, sofro, mereci-o, mas vem em meu auxílio. OH! estes cavalos, esta caleche, que lhe pertencem; horrorizo-me com a ideia de me servir deles. Não tardará que os não veja mais!" 
                E torturando-se por esta forma chegou à casa de Dolly e subiu a escada. 
                - Está aqui gente? perguntou no vestíbulo.
                - Catarina Alexandrovna  Levine, respondeu a criada. 
                - Kitty, a Kitty por quem Wonsky esteve apaixonado, pensou Ana. A Kitty que ele tem pena de não ter desposado, ao passo que deplora o dia em que me encontrou. 
                As duas irmãs estavam em conferência acerca do pequerrucho de Kitty quando lhe anunciaram Ana; só Dolly a veio receber no salão.
                - Não partes ainda? Queria precisamente passar em tua casa hoje; tenho uma carta de Stiva. 
                - Recebemos um telegrama, e Ana, voltando-se para ver se Kitty aparecia. 
                - Ele diz que não compreende o que Alexis Alexandrovitch  exige, mas que não partirá sem obter uma  resposta definitiva. 
                - Tens visitas? 
                - Kitty, respondeu Dolly embaraçada; está no quarto das crianças. Sabes que esteve muito doente? 
                - Bem sei. Podes mostrar-me a carta de Stiva? 
                - Certamente; vou buscá-la... 
                " Alexis Alexandrovitch não recusa, pelo contrário; Stira tem esperança, disse Dolly, parando na soleira da porta. 
                - Eu não espero nem desejo nada. Kitty pensará contra a sua dignidade encontrar-se comigo? pensou Ana ao ficar só. Tem talvez razão; mas ela, que amou Wronsky, não tem o direito de pretender dar-me lições. Bem sei que uma mulher seria não me pode receber; sacrifiquei-lhe tudo e eis a minha e; ah quanto o odeio! Para que vim aqui? Ainda me sinto pior aqui que em casa. 
                Ouviu a voz das duas irmãs na casa contígua: 
                "E que vou dizer  a Dolly? Dar a Kitty a satisfação de espetáculo da minha infelicidade? De mais, Dolly não compreenderia nada. Se desejo ver Kitty é para lhe provar que sou insensível a tudo e que desprezo tudo." 
               Dolly entrou com a carta. Ana percorreu-a e entregou-lha. 
                - Eu sabia isso e já não me importo mais com coisa alguma. 
               - Porque? Eu tenho esperança, disse Dolly examinando Ana atentamente; na vira em tal disposição de espírito. Em que dia partes t? 
               Ana fechou os olhos a meio, e olhou para diante de si sem responder. 
               - A Kitty terá medo de mim? perguntou ela ao cabo de um momento, lançando um olhar para a porta. 
               - Que ideia! mas ela dá de mamar aos filhos e ainda não está bem habituada... estima até muito ver-te, pelo contrário, e vai aparecer, respondeu Dolly, a quem custava mentir. Ai vem ela. Kitty não quisera efetivamente aparecer ao saber que Ana estava ali; Dolly conseguira, entretanto, convencê-la fazendo um esforço sobre si mesma, a jovem senhora entrou no salão e corando, aproximou-sede Ana para lhe estender a mão. 
               - Tenho imenso prazer, disse com emoção na voz. 
               E todas as suas prevenções contra esta má mulher caíram à vista da bela cara simpática de Ana. 
               Teria achado natural que me não quisesse ver, disse Ana; estou a costumada a tudo. Esteve doente, disseram-me. Acho-a efetivamente mudada. 
               Kitty atribuiu o tom seco de Ana ao acanhamento que lhe causava a sua falsa situação e o coração da jovem senhora confrangiu-se de compaixão
               Conversaram sobre a doença de Kitty, do seu filho, de Stiva, mas o espírito de Ana não estava visivelmente ali. 
               - Vim dizer-te adeus, disse ela a Dolly, levantando-se . 
               Quando partes? 
               Sem responder, Ana voltou-se para kitty com um sorriso. 
               Estimei muito tê-la visto outra vez. Ouvi tanto falar de ti, até por seu marido. Sabe que ele me foi visitar? Agradou-me muito, acrescentou ela com uma intenção maldosa. Onde está ele? 
                No campo, respondeu Kitty, corando. 
                - Dê-lhe muitas lembranças minhas, não se esqueça. 
               - Não esqueço, respondeu Kitty inocentemente com um olhar de compaixão. 
              - Adeus, Dolly, disse Ana beijando esta.
              - Está sempre tão sedutora como de antes, fez notar Kitty a sua irmã, quando esta entrou, depois de ter acompanhado Ana até à porta. E como ela é linda! Mas tem Qualquer coisa de estranho que mete dó, muita dó. 
              - Não a acho hoje no seu estado normal. Pensei que ia desfazer-se em lágrimas na ante-câmara. 
               - De novo dentro do caleche, Ana sentiu-se mais infeliz que nunca; a sua entrevista com Kitty despertara dolorosamente nela o sentimento da sua degradação moral, e esse sofrimento veio juntar-se aos outros.  Sem saber bem o que dizia, deu ordem ao cocheiro de a levar para casa. 
               - Olharam-me como um ser estranho e incompreensível! ... Que se podrão eles dizer uns aos outros? pensou vendo dois transeuntes conservarem-se na rua; terão eles a pretensão de um ao outro comunicar as suas impressões?  não é possível partilhar com outrem o que se sente! Eu que queria confessar-me a Dolly! Foi melhor calar-me; a minha infelicidade só podia regozijá-la, embora ela mo dissimulasse;  havia de achar justo que eu expiasse a felicidade que ela me invejou.  E Ketty? Essa ficaria mais contente ainda; leio-o bem no seu coração; odeia-me porque agredi ao marido; aos seus olhos eu sou uma mulher de maus costumes. Ah! se eu fosse o que ela pensa, com que felicidade eu teria virado a cabeça a esse seu marido! Tive essa ideia, confesso. - Eis ai um homem  cheio da sua pessoa, disse ela ao aspecto de um sujeito gordo e rubicundo que vinha ao seu encontro e cumprimentou-a  sem a conhecer.  Conhece-me tanto como a mais gente; se eu mesma não sei se me conheço! Só conheço mes appétits, como dizem os franceses... Olha os garotos, a arregalarem os olhos para aqueles ruins gelados, disse de si para si, vendo dois rapazotes parados diante de um vendedor que pousara no cão uma geleira, limpando o suor com o canto da rodilha; todos nós gostamos de guloseimas e na falta de bombons desejamos ruins gelados, como Kitty, que não podendo casar com Wronsky, contentou-se com Levine; ela detestava-me e tem ciúmes de mim, e eu pelo meu lado tenho ciúmes dela. O mundo é isto. 
                "Futkin cabeleireiro; Futkin é o meu cabeleireiro...; fá-lo-ei rir com esta tolice, pensou ela, para logo depois se lembrar que não tinha mais ninguém a quem fazer rir. 
               "Tocam vésperas; aquele tendeiro faz o sinal da cruz com tal pressa que parece recear perdê-lo. Para que esta igrejas, estes sinos, estas mentiras? para dissimular o ódio que uns aos outros temos como aqueles ivochiks que se injuriam. Yavshine tem razão de dizer: Querem tirar-me a camisa, e eu a dos outros". 
               No torvelinho dos seus pensamentos, Ana esqueceu um momento a sua dor e ficou surpreendida quando a caleche parou. O guarda portão vindo ao seu encontro é que a fez entrar em si. 
              - Já veio a resposta? 
              - Vou-me informar, disse o guarda-portão. 
              Voltou um momento depois com um telegrama. Ana leu; 
              - "Não posso estar em casa antes das 10 horas. Wronsky." 
              -  É o próprio?  
              -  Ainda não voltou. 
              -  Uma vaga necessidade de vingança levantou-se na alma de Ana, e subiu as escadas de corrida. 
               - Irei eu  mesma buscá-lo, pensou ela, antes de  partir para sempre. Dir-lhe-ei o que penso. Nunca odiei ninguém como este homem. 
                E vendo um chapéu de Wronsky na antecâmera, estremeceu de aversão. Não refletiu que o telegrama era a resposta a um seu e não à carta enviada pelo próprio - que Wronsky não podia ter recebido ainda. 
                - Está em casa da mãe, pensou ela, conversando alegremente sem se incomodar com os cuidados que inflige... 
                E querendo fugir aos terríveis pensamentos que a invadiam naquela casa, cujos muros a esmagavam com o seu terrível peso; 
                - É preciso partir bem de pressa, disse sem saber para onde ir, tomar o caminho de ferro, persegui-lo, humilhá-lo. Consultando o guia viu que o  comboio da tarde partia às 8 e 2 minutos. 
                - Chego a tempo. 
                E mandando por outros cavalos na caleche deu-se pressa em por num pequeno saco de viagem os objetos indispensáveis a uma ausência de alguns dias; decidida a não voltar àquela casa, passaram-lhe pela cabeça mil projetos. Resolveu continuar o seu caminho passando a andar pela estrada de ferro de Nijni, depois da discussão que se passara na gare ou em casa da condessa, para ir parar na primeira cidade que encontrasse . 
                O jantar estava pronto, mas a comida fazia-lhe náuseas; tornou a entrar para a caleche, e assim que o cocheiro acabou de atrelar os cavalos, irritada por ver os criados irem e virem em torno dela. 
                - Não preciso de ti, Pedro, disse ao trintanário que se dispunha a acompanhá-la. 
                - Quem comprará os bilhetes? 
                - Bem, vem se quiseres, é-me indiferente, respondeu ala contrariada. 
                Pedro subi para o lado do cocheiro a quem deu ordem de tocar para a gare e Nijni.
                - Eis que as minhas ideias se subornam! disse Ana, quando se achou de novo na caleche rolando sobre o pavimento desigual. Em que pensava eu por último? Ah, sim nas reflexões de Yavskine sobre a luta pela vida e sobre o ódio, o único sentimento que une os homens. Que ides procurar para vos divertirdes, pensou mentalmente interpelando um bando alegre instalado em um trem puxado por quatro cavalos que evidentemente ia divertir-se no campo; "não podereis escapar a vós mesmos!" e vendo a alguns passos dali um operário bêbado guardado pela polícia. "Isto é melhor. Nós experimentamos o prazer e achamo-nos sempre muito abaixo das alegrias supremas a que aspiramos! E pela primeira vez Ana dirigiu sobre as suas relações  com o conde, esta luz brilhante que de repente lhe revelavam a vida. "Que procurou ele em mim? A satisfação da vaidade mais do que o amor!" E as palavras de Wronsky, a expressão de cão submisso que tomava a sua fisionomia nos primeiros tempos da sua ligação vinham-lhe à memória para confirmar este pensamento. Ele antes de tudo procurou o triunfo do exito. Amava-me, mas principalmente por vaidade. Agora que já não tem orgulho de mim, acabou-se; tendo-me tomado tudo o que podia me tomar, e não achando mais de que se vangloriar, sou-lhe pesada, e só se preocupa com não faltar às mostras exteriores de consideração para comigo. Se quer o divórcio é com este intuito. Ama-me talvez ainda, mas como? "The zestes  gone". No fundo sera para ele um alívio livrar-se da minha presença. Ao passo  que o amor se torna de dia para dia mais egoisticamente apaixonado, o dele extingue-se pouco a pouco; por isso já não vamos de acordo. Eu experimento  a necessidade de o atrair, ele a de fugir-me; até o momento da nossa ligação íamos ao encontro um do outro, agora marchamos em sentidos opostos. Ele acusa-me de ser ridiculamente ciumenta, eu também me acuso disso, mas a verdade é que o meu amor já não se sente satisfeito." Na turbação em que estava Ana mudou de lugar na caleche, mexendo involuntariamente os lábios como se fosse falar. "Se pudesse procuraria ser para ele uma amiga sensata e não uma amante apaixonada que a sua frieza exaspera; mão não posso transformar-me. Ele não me engana, tenho a certeza; mas está mais apaixonado pela princesa Sarokine do que de Kitty, mas que tenho eu com isso? Desde que o meu amor o fatiga, desde que ele não teve por mim o que eu sinto por ele, que me importa a sua boa conduta? Quase preferia o seu ódio; onde o amor acaba, começa o tédio, é esse o inferno que eu suporto.
                 "Que bairro desconhecido é este? montanhas, casas, mais casas, habitadas por pessoas que se odeiam umas `s outras ... 
                Que me poderia acontecer que me desse ainda felicidade?   Suponhamos que Alexis Alexandrovitch consinta no divórcio, que me restitua Sérgio, que me case com Wronsky."
                 E pensando em Karénine, Ana viu-o diante dela com o seu olhar apagado, as mãos com as suas veias azuis, os seus dedos magros, e a ideia das suas relações outrora qualificadas e ternas, fê-la estremecer de horror. 
                 - Admitamos que eu me case. Kitty não me respeitará mais por isso. Sérgio não me perguntará depois porque tenho dois maridos? Wronsky não mudará para mim? Será ainda possível estabelecer entre ele e eu relações que me deem, não digo felicidade, mas sensações que não sejam a tortura? Não, respondeu sem exitar, a cisão entre nós é demasiado profunda; eu faço a infelicidade dele e ele a minha. Já não podemos remediar nada. Porque é que esta mendiga com o pequerrucho imagina inspirar comiseração? Não somos todos lançados à terra para sofrer uns pelos outros? Rapazes que voltam da escola... meu pequenino Sérgio!... Julguei também que o amava, a minha afeição por ele enternecia-me a mim própria. Entretanto vivi sem mele, trocando o seu amor pelo de  outro e enquanto essa paixão pelo outro foi satisfeita, não me queixei da troca." 
                 Estava quase contente ao analisar os seus sentimentos com esta implacável clareza. 
                  - Somos todos os mesmos, eu, Pedro, o cocheiro, todos estes mercadores, aqueles que vivem à beira do Volga e que se chamam por meio de anúncios colados nos muros, em  toda a parte, sempre. ..
                  - Toma-se bilhete para Obiralovka?  perguntou Pedro ao aproximar-se da gare. 
                  Ana teve dificuldade em compreender a pergunta, o seu pensamento divagava e já esquecera do que vinha fazer ali. 
                  - Tome, respondeu ela, estendo-lhe o porte-monnaie, e descendo da caleche com a sua mala vermelha na mão. 
                  Os pormenores da sua situação voltaram-lhe à memória enquanto atravessava a multidão para se dirigir à sala de espera; sentada em um grande divã circular enquanto esperava o comboio, repassou no pensamento as diferentes resoluções a que se podia fixar; depois imaginou o momento em que chegaria à gare, o bilhete que mandaria a Wronky, o que lhe diria ao entrar no salão da velha condessa, onde talvez naquele momento se queixava dos amargores da sua vida. A ideia que ainda poderia viver feliz atravessou-lhe o cérebro. Quanto era difícil amar e odiar ao mesmo tempo, quando sobretudo o seu próprio coração batia desesperadamente. 
                  Um toque de campainha ressoou repentinamente, alguns rapazes barulhentos, de aparência vulgar, passaram diante dela; Pedro atravessou a sala e aproximou-se para acompanhá-la até ao caminho de ferro; um grupo de homens, parados ao pé da porta, fizeram silêncio quando a viram passar; um deles murmurou algumas palavras ao seu vizinho, devia ser uma grosseria. Ana tomou lugar em um vagão de primeira, colocou a sua mala no assento de pano cinzento já desbotado; Pedro levantou o seu chapéu agaloado com um sorriso de idiota em sinal de despedida e afastou-se. o condutor fechou a portinhola. Uma senhora ridiculamente vestida e que Ana despiu em imaginação para se aterrorizar da sua fealdade, corria ao longo da plataforma seguida de uma menina que ria afetadamente. 
                 - Esta criança é grotesca e já pretensiosa, pensou Ana.  E  para não ver ninguém, sentou-se do lado oposto do vagão. 
                 Um pequeno mujik sujo, com um boné de onde se escapavam mechas de cabelos desgrenhados, passou perto da janela debruçando-se por cima dos rails. 
                - Esta cara não me é desconhecida, pensou Ana; e de repente lembrou-se do seu pesadelo, recuando assombrada até à porta do vagão que o condutor abria para deixar entrar um cavalheiro e uma senhora. 
                - Quer sair? 
                Ana não respondeu, e ninguém pôde notar sob o seu véu o terror que a gelava. Tornou a sentar-se; o par tomou lugar defronte dela, examinando discretamente, embora com curiosidade, os menores detalhes da sua toilette. O marido pediu licença para fumar, e tendo-a obtido. fez notar a sua mulher em francês que ainda sentia mais necessidade de falar que de fumar; trocaram entre si toda a  sorte de observações estúpidas no intuito de chamar a atenção de Ana e de entrar em conversação com ela. Aqueles dois deviam detestar-se; tão tristes monstros podiam lá amar-se? 
                O ruido, os gritos, os risos que sucederam ao segundo toque da sineta deram a Ana vontade de tapar os ouvidos; que poderia dar vontade de rir? Depois do terceiro sinal a locomotiva assobiou, o comboio pôs-se em movimento e o cavalheiro fez o sinal da cruz. 
               - Que pode ele entender por esse sinal? pensou Ana, desviando os olhos furiosa para olhar, por cima da cabeça da dama, os vagões e as paredes da gare que passavam.
               O movimento tornou-se mais rápido, os raios do sol já no poente penetraram no vagão e uma ligeira brisa enfunou as cortinas. Ana, esquecendo os seus vizinhos, respirou o ar fresco e retomou o fio das suas reflexões. 
               Em que pensava eu? que a minha vida, de qualquer maneira que ma represente, não pode ser senão dor; todos nós somos destinados a sofrer e apenas procuramos os meios de no-lo dissimular. Mas quando a verdade se nos entra pelos olhos a dentro? ...
                - A razão foi dada ao homem para se libertar do  que o incomoda, disse a dama em francês, encantada com a sua frase. 
                Estas palavras correspondiam ao pensamento de Ana. 
                - Libertar-se do que o incomoda, repetiu ela, e um lance de olhos ao homem e a sua magra metade fê-lhe compreender que esta devia considerar-se uma criatura incompreendida e que o seu nédio marido não a dissuadia de tal e antes disso se aproveitaria para enganá-la. Ana mergulhava nos cantos mais íntimos daqueles corações, mas a coisa não tinha nenhum interesse, e continuou as suas reflexões. 
                 Chegando à gare seguiu a multidão, procurando evitar o grosseiro contato daquela gente barulhenta, e demorando-se na plataforma para discutir consigo mesma oque ia fazer. Tudo agora lhe parecia difícil de pôr  em execução; empurrada, atropelada, observada curiosamente, não sabia onde refugiar-se. Finalmente lembrou-lhe perguntar a um empregado se o cocheiro do Conde Wronsky não estava na gare com a carta. 
                  O Conde Wronsky? Há pouco vieram buscar a princesa Sarokine e a filha. Que aspeto tem esse cocheiro? 
                  No mesmo momento viu adiantar-se para ela o seu enviado, o cocheiro Miguel com a sua libré nova, trazendo um bilhete -  com importância e orgulhoso por ter desempenhado a sua missão. 
                  Ana quebrou o lacre e o seu coração confrangeu-se ao ler: 
                  "Lamento que seu bilhete não me encontrasse em Moscou. estarei em casa às 10 horas." Wronsky. 
                 - É isso que eu esperava, disse com um sorriso sardônico. Podes voltar para casa, disse dirigindo-se ao jovem cocheiro. 
                 Pronunciou aquelas palavras lenta e docemente; o coração batia-lhe a estalar e impedia-a de falar. 
                "Não, não te permitirei mais fazeres-me assim", pensava ela, dirigindo-se ameaçadoramente a quem a torturava, - e continuou a seguir a plataforma. 
                - Para onde fugir, meu Deus! disse ela para si vendo-se examinada por pessoas que o seu traje e a sua beleza intrigavam. 
                O chefe da gare perguntou-lhe se se esperava algum comboio; um pequeno vendedor de Kwas não a pedia de vista. Tendo chegado à extremidade da plataforma parou; algumas senhoras e crianças conversavam ali com um cavalheiro de óculos, que provavelmente a tinham vindo esperar; também elas se calaram e se voltaram para ver passar Ana. Esta apressou o passo;um comboio de mercadorias aproximara-se fazendo tremer a plataforma; julgou-se de novo no comboio em marcha. De repente lembrou-se do homem esmagado no dia em que entrara Wronsky pela primeira vez em Moscou, e compreendeu-se o que lhe restava fazer. 
                Ligeira e rapidamente desceu as escadas que iam desde a extremidade da plataforma até aos Rails e e caminhou ao encontro do comboio. Examinou friamente a grande roda da locomotiva, as correntes, os eixos, procurando medir com o olhar a distância que separa as rodas dianteiras das traseiras do primeiro vagão.
                - Ali, disse ela, olhando a sombra projetada pelo vagão na área mesclada de carvão que cobria as solipas; ali no meio, ele será punido e eu estarei livre de tudo e de mim mesma. 
                A sua pequena mala vermelha, que lhe custou a desprender do braço, fê-la perder o momento de se lançar debaixo do primeiro vagão; esperou pelo segundo. Um sentimento análogo ao que ela experimentava outrora ao dar um mergulho no rio, apoderou-se dela e fez o sinal da cruz. Este gesto familiar despertou na sua alma uma multidão de recordações de mocidade e de infância; a vida com as suas alegrias fugitivas brilhou um instante diante dela; mas não tirou por um só momento os olhos do vagão, e quando o espaço entre as duas rodas se apresentou, lançou a malinha para longe, ajeitou a cabeça entre os ombros e, com as mãos para diante, atirou-se de joelhos para baixo do vagão. Teve tempo de ter medo. "onde estou? porque?" pensou ainda, procurando recuar. Mas uma massa enorme inflexível bateu-lhe na cabeça e arremessou-a de costas: 
                 - Senhor, perdoai-me murmurou então sentindo a inutilidade da luta. 
                 Um pequeno mujik, balbuciando entre dentes, inclinou-se do estribo.
                  E a luz, que para desgraça tinha alumiado a hora da vida, com os seus tormentos, as suas traições e as suas dores, despedaçando as trevas brilhou com clarão vivo, vacilou e extinguiu-se para sempre.